17 abril, 2008

O careta e o diabo

Costumo pensar que talvez não exista um só deus, como talvez um careta – um careta? – é, como um careta pensa.
Certa vez, uma mulher careta pensou em entrar na loja de artesanato de minha mãe, uma loja onde encontra bagulhadas confeitadas em mãos de gente própria. Bagulhadas das mais variadas estrambóticas. De tamanhos e cores desajuntadas, texturas e belezuras de alhures. Esta mulher era gorda e desalinhada (torta), mas tinha uma terna voz, meio que de estranhosamente consigo mesmo. Uma voz que se deixava levar, um olhar vazio, destrilhado.
Me sentia como que quase dorminicano (dormir do marciano), naqueles lubrilhar do final da noite.
Atrás da gorda moça, desviando sua penosa voz pelo meio de visões, avistei um oratório, parecia que seu olho destrilhado sem direção me guiava. Ela percebeu minha desatenção, virou-se e começou a ler o que o oratório lhe dizia: festa 11 de julho. Comemora-se todo dia 11. A cruz sagrada seja minha luz! Não seja o dragão o meu guia, retire-se Satanás. Nunca me aconselhes coisas vãs, é mal que tu ofereces. Bebe tu mesmo o teu veneno. Amém. No mesmo instante, aquela mulher gorda, de saudoso, porém distante, olhar, soltou uma gargalhada como nunca ouvira. Mas uma risadela única e rápida.
Logo achei que o melhor á fazer era ignorá-la. Desviei novamente meu olhar desatento e deparei com outro oratório. Caçamba! Agora parecia perseguição. Mesmo assim, assim mesmo, não me ausentarei da fala e eu mesmo comecei a ler o que o oratório me dizia, porém, esta escolha, talvez fosse propositalmente estipulada. Mirei bem no meio da Santa e comecei a declamar com a força mais dramática possível: Ó poderosa Santa Rita, chamada Santa dos impossíveis, advogada dos casos desesperados, auxiliadora da última hora, refúgio e abrigo da dor que arrasta para o abismo do pecado e da desesperação, a Voz recorro no caso difícil e imprevisto, que dolorosamente oprime o meu coração. Caçamba!
Após isso, toda bagulhada aparecia-me divina, divinamente sem graça. Nunca me vi naquele estado de catacumba, relapsamente distraído, molengamente morto vivo. E, de jeito, fiquei durante umas duas décadas. Juro!
Era... A gorda, o oratório e a Santa.
A gorda, o oratório e a Santa.
Foi como num despacho certeiro.
Como pinga que desce reto.
Como beudo que cai duro. Estava claro! Eu enxergava o que diante de mim acontecia. Estava muito claro... ... que o dia passou em branco.
Aquela luz! Meu olho ardia feito faca no dente. Estava também branco. O dente, a faca e o olho.
Era sangue, mas estava branco.


por Pedro Valadares.

Um comentário:

Anônimo disse...
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