04 novembro, 2009

O jéca e o tinhoso

Vinha o jéca voltando de um fim de tarde infrutífero de mãos abanando sem ter pego nem lambari naquele córrego. E fazia sol. O jéca é ecologicamente sustentável mas não tem dó dos bichinhos — aliás nem pensa neles, nem pensa mesmo, vai pensar em bicho, peixe e frango é comida, cachorro não, e pronto. Afinal, peixe é fruta que nada. Enfim, alheio à própria cultura na qual vive imerso, vinha o jéca voltando daquela pescaria mal-sucedida. E trilhando a picada de chão sob o sol do fim de tarde ainda matutava o que ia dizer pra patroa por que voltava de mãos abanando. E uma nesga de medo, chamado eufemisticamente de receio muitas vezes, preocupava o jéca. E vinha matutando mentiras na lata de jéca pescador de córrego. A mentirinha era fácil de enganar a mulher, o pior mesmo era o que ele ia comer. A feira na cidade ainda estava longe lá no sábado, então já viu. Nessas cismas vinha andando, entre pedras e árvores caminhando pelo chão de terra, na trilha que percorria no fim de tarde debaixo do sol.

Eis que aconteceu o evento temático deste pequeno conto narrativo. Após virar uma curva com uma pedra de tamanho razoável, de altura maior que a de um homem médio, à margem da trilha de chão, o jéca deparou-se com um tipo de paletó preto e calças pretas e chapéu preto parado na trilha. O jéca olhou para o rosto do tipo, evidententemente o tinhoso evidenciado no título do conto, que sorria mostrando os dentes, e soltou um cumprimento bastarde típico da roça. Sentia uma estranheza naquele momento e mais uma ponta de medo — o jéca além de acomodado no canto era covarde — e fez que ia passar pelo tipo. Mas o cabrunco respondeu ao cumprimento e com sua postura firme impôs sua presença e perguntou o que o jéca vinha cismando. Uma conversa mole seguiu-se, e o jéca seguiu andando contente o seu caminho com um peixe grande na sacola e uma heróica história de pescador na cachola. Até aí não se preocupava com seu futuro destino faustiano e saboreou seu jantar sem culpa cristã. Assim a falsa tranquilidade da cachaça e da preguiça do jéca continuavam a envolver sua vida sem que ela de fato medrasse, até sua morte. E o progresso continuava avançando e engolindo essas paragens, e o jéca já sonhava com um emprego assalariado na indústria automobilística, porque o imposto da roça já estava alto e as vendas na feira não davam mais pra nada. E assim o jéca ia pro inferno.

Um comentário:

guido disse...

e assim foi o processo do mundo, esquecemos nossas origens, nossas essencias foi-se a troca e veio o mercado...muito bom o texto parabens hermano