06 agosto, 2006

CAIPIRA HOJE

por Hermano Vianna

Fela, mestre-de-cerimônias-multimídias do Mercado
do Peixe, diz que fui eu que inventei o nome
pós-caipira para designar o movimento que ele me
anunciava. Nem me lembro ao certo o contexto de
tal invenção: era certamente uma brincadeira. Mas
como a brincadeira colou, e ficou séria, tenho
agora a missão de sair correndo atrás do prejuízo
(prejuízo bom esse!), e criar o embasamento
"teórico" necessário para tudo fique bem claro.
Vou também levar a brincadeira a sério (minha
maneira de seriedade...), tentando tirar dela as
conseqüências politico-culturais mais interessantes.

Que interesse pode ter se usar a palavra caipira
- mesmo com o prefixo pós - hoje? Pensando nisso,
resolvi voltar aos clássicos, àqueles livros que
definiram os caipiras como grupo cultural na
sociedade brasileira. Comecei pelos textos de
Monteiro Lobato que criaram o personagem Jeca
Tatu. Nunca tinha lido esses textos, talvez por
pudor, talvez por achar que ia me deparar com
lado mais careta e reacionário de Monteiro
Lobato, um lado que gostaria de esquecer e fingir que não existia.

Preferia guardar na memória as minhas lembranças
de infância, da época em que lia sua coleção
infantil sem parar. Monteiro Lobato me ensinou a
gostar do Brasil, de um determinado Brasil que
até hoje traduz os aspectos mais interessantes
que descubro e defendo em nossa cultura. Acho até
que fiz o Música do Brasil por causa dele, dessas
leituras. Entendo os problemas, ou o que existe
de problemático em sua obra. Por exemplo: seu
anti-modernismo; ou a caricatura de cultura
afro-brasileira representada por Tia Nastácia
(apesar de Tia Nastácia ter me levado a admirar a
cultura afro-brasileira); entre muitos outros
aspectos que considero equivocados ou ingênuos.
Mas, pelas informações que tinha sobre Jeca Tatu,
custava a acreditar que um cara tão inteligente
quanto Monteiro Lobato, que gostava tanto da
cultura popular brasileira, teria podido criar
uma imagem tão simplista do (na verdade um
furioso ataque contra o) caipira, que naquela
época ele ainda chamava de caboclo.

Fui direto ao texto. De início encanta o estilo:
deve ter sido um susto na redação do Estado de
São Paulo, quando o texto chegou como carta no
final de 1914: quem é esse cara que vive no
interior e escreve tão bem, com tanta
mordacidade? Concordando ou não com o que é dito
ali, não podemos deixar de achar o texto uma delícia.

Mas hoje não dá pra levar a argumentação do texto
à sério. Fazer uma crítica rigorosa é uma tarefa
quase ridícula (mesmo se quisermos elogiar o que
existe de interessante nas entrelinhas, como um
proto-ecologismo ou um combate ao conservadorismo
ou coronelismo político que ainda hoje domina
grande parte de nossas relações sociais
interioranas). Vou aqui fazer um outro exercício,
talvez - para o gosto de muitos leitores - bem
amalucado: quero inverter alguns argumentos de
Monteiro Lobato, enxergando qualidades naquilo
que para ele só podia ser defeito.

Vou tratar o Jeca Tatu como herói, pelos mesmos
motivos que na visão de Monteiro Lobato ele era
uma praga ou um motivo de vergonha
nacional. Vamos à sua descrição, com citações
tiradas dos textos do criador do Sítio do Picapau
Amarelo: o caipira seria "espécie de homem
baldio, seminômade, inadaptável à civilização,
mas que vive à beira dela na penumbra das zonas
fronteiriças." E mais: "recua para não
adaptar-se." Ou então: "existe a vegetar de
cócoras, incapaz de evolução, impenetrável ao
progresso." Eis aí, naquilo que Monteiro Lobato
enxergava como vício, todos os traços de um herói
contracultural (ainda mais hoje, quando falar bem do ócio voltou à moda).

É claro: se achamos, como muita gente continuar a
achar, que a chegada da "civilização", ou a
adaptação à "civilização" (por si só um conceito
duvidoso: afinal, o que é ser civilizado? há só
uma maneira de civilizar-se?) é um bem
indiscutível, temos que condenar o Jeca Tatu. Mas
se duvidarmos da bondade ou das boas-intenções da
"civilização"? Não devemos celebrar o homem
inadaptado, que recua e não abraça sorridente o
"progresso", que desconfia do "civilizado" e por
isso prefere viver "na penumbra das zonas fronteiriças"?

Fico tentado em pensar essas sombrias zonas
fronteiriças criadas/habitadas pelos caipiras
como exemplos daquilo que Hakim Bey chama de
zonas autônomas temporárias, ou TAZ (do inglês
Temporary Autonomous Zone). Mas fico ainda mais
tentado a pensar o caipira como um nômade
anti-capitalista, como aqueles descritos na
filosofia de Gilles Deleuze. Encontrei este texto
numa conferência que Deleuze fez sobre Nietzsche
intitulada Pensamento Nômade: "é verdade que, no
centro, as comunidades rurais estão presas e
fixadas pela máquina burocrática do déspota, com
seus escribas, seus padres, seus funcionários;
mas na periferia, as comunidades entram num outro
tipo de aventura, num outro tipo de unidade dessa
vez nomádica, numa máquina de guerra nômade, e se
descodificam no lugar de se deixar
sobrecodificar." Parece a descrição das
comunidades caipiras segundo Monteiro Lobato. Com
uma diferença importantíssima: Deleuze gosta dos nômades. Eu também gosto.

Então, mesmo o silêncio do caipira, mesmo a
aparente facilidade com que o caipira deixa se
manipular pelas forças governistas, pode ser
pensado como uma estratégia para se manter à
parte, nunca chamando a atenção. Esse silêncio
seria uma determinação de nunca compactuar, e
sempre fugir (fingindo estar sendo "tocado") -
parece a maioria silenciosa de Jean Baudrillard,
que se recusando à participar acaba destruindo os
fundamentos da representação política... Essa é
uma estratégia político-cultural
sofisticadíssima. Como revela, sem perceber a
radicalidade da estratégia, o próprio Monteiro
Lobato: "E agora? Que fazer processá-lo [o
caipira]? Não há recurso legal contra ele. A
única pena possível, barata, fácil e já
estabelecida como praxe, é 'tocá-lo'." Como se
toca um cachorro. Mas aí quem toca está fazendo
justamente o que o caipira quer: sair dali,
desaparecer sem compactuar, sem se tornar um
empregado obediente ou "civilizado".

Monteiro Lobato diz: "o caboclo é uma quantidade
negativa." Isso é lindo. Resume tudo. E poderia
se tornar um lema para o movimento pós-caipira:
radicalizar a negatividade: sumir quando correr
perigo de se deixar aprisionar por um estilo; ser
como a Natascha Kinsky no filme No Fundo do
Coração: cuspe na chapa quente, que desaparece
sem deixar vestígio: como os índios, que não
tinham "história", que muita gente acha que são
menores por não terem deixado documentos ou
monumentos; eles eram mais espertos, e não
andavam por aí carregando o peso de bibliotecas e
museus. Volto a citar Monteiro Lobato: "um ano
que passe e só este [o sapezeiro] atestará sua
[do caipira] estada ali; o mais se apaga como por
encanto." Não fica "nada que seja revelador de
permanência." Pelo contrário: os caipiras, como
os índios das terras baixas sul-americanas (sem o
Estado dos Incas), eram os mestres da impermanência.

Estamos reaprendendo, com a tecnologia digital, a
fazer essa mágica: o "apagar por encanto" que é o
"esquecimento como força ativa", para voltar a
citar o Nietzsche de Deleuze. Pensei nisso ao
redescobrir uma entrevista de 1981 - quase
esquecida - com Ralf Hutter, do Kraftwerk. A
banda vai para o estúdio todos os dias. Mas grava
pouquíssimo. Ele dizia na entrevista: "Fitas são
históricas. No momento em que você termina a
gravação, elas se tornam históri-cas. Você
termina com um excesso de história. Nós tentamos
esquecer muito da música que tocamos." E
complementa: "Nós somos as Brigadas Vermelhas da
música. Penso que temos um ponto de vista muito
determinado. Nós achamos que o mundo da música é
muito ori-entado para a história, para as
gravações. Nós queremos projetar uma atividade mais anár-quica."

O Kraftwerk e as máquinas nos ensinam a esquecer
e apagar, a viver o momento do remix e não querer
guardá-lo para sempre (ninguém tem espaço nem
interesse para armazenar tanta coisa!) Até porque
o mundo já está transbordando de coisas,
documentos e monumentos. Por que essa compulsão
de guardar tudo? Não é melhor ficar "de cócoras",
aproveitando a impermanência de tudo (o mais
legal é remixar, é ver todo mundo remixando, e
não comprar o disco dos remixes).

Começando a concluir: caipirando o uso das
máquinas, não corremos o risco apontado por
Antonio Candido, aquele do "saudosismo
transfigurador" ou de "uma verdadeira utopia
retrospectiva", que pensa o tempo "dos antigo"
como o tempo da fartura, e lamenta o presente. Um
verdadeiro pós-caipira (anti o
caipira-estilizado-de-festa-junina, festa sempre
nostálgica do antigo, do que já passou - mas isso
não quer dizer que o estilo junino não seja
útil... ou mesmo o sertanejo-hiperpop de Sandy &
Junior... tudo é radicalmente reciclável...)
aproveita radicalmente o presente, sem se
preocupar com o registro do que está vivendo.
Todo o resto, como diria o Jeca Tatu de Monteiro
Lobato, "não paga a pena." Porque não paga mesmo!

Presente? O que é o presente para um pós-caipira?
O presente pode ser uma maneira de se perder no
tempo, como disse Gilberto Gil: "jeca total deve
ser jeca tatu... um tempo perdido... interessante
a maneira do tempo... ter perdição quer dizer, se
perder no correr, decorrer da história". Esse
presente, assim pensado e vivido, não é
certamente o fim da história, mas a história
vivida sem a ilusão da evolução totalitária. Cada
pós-caipira tem seu próprio tempo, e sua maneira
- acocoradamente correta - de estar no tempo.
Lição: o tempo do mangue-beat: nada nostálgico da
pureza perdida do maracatu; e por isso o maracatu
está mais vivo do que nunca. Hoje. O mangue-beat
nos ensinou a botar fogo na cultura local,
afrociberdelificando-a. É preciso agora
jeco-centrificar o afrociberdelificado. Para
fazer coro com o Jeca Tatu de Monteiro Lobato: "Eta fogo bonito!"

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